DONALD TRUMP E OS BOMBONS
102ª CRIAÇÃO DO TEATRO DA GARAGEM
TEXTO E Encenação Carlos J. Pessoa
24 a 27 SETEMBRO 2020
[qui a sáb 21h30, dom 16h30]
Teatro Taborda
Após a hecatombe da peste, da fome e da guerra, que incendeia as ruas da América, que incendeia as almas inquietas, com dúvidas, muitas, é preciso recomeçar. É preciso retomar os ideais fundacionais do Ocidente. É preciso moderação, prudência, bom-senso.
É preciso: Liberdade, Igualdade, Fraternidade e um amor esquisito.
Um amor esquisito que, discretamente, se intrometa entre os slogans exauridos. Um amor esquisito pelos outros, pelas diferenças que acrescentam, pelas distâncias acentuadas que agora se encurtam, pelo detalhe do rosto do outro, da pele do outro, da dificuldade de entender o outro, de nos entendermos a nós mesmos. Um amor esquisito que começa no íntimo, sem grandes frases, com um misto de raiva e perplexidade. Um amor esquisito por contraponto ao ódio reinante. Um amor esquisito capaz de travar a mentira. Um amor pelas verdades esquisitas de cada um, pela duração inefável das verdades simples de cada um.
Urge aprender a negociar com um mundo, com um planeta, com uma terra que reage a uma pressão demográfica inédita na história humana; e essa negociação tem de ser simultânea com a revolta das pessoas, com as desigualdades gritantes dos que se tentam safar a qualquer custo sem perceberem que ninguém se vai safar se não nos safarmos todos, dito de outro modo, se não formos capazes de unir esforços em lugar de procurar refúgios, ou terras prometidas. A terra deixou de prometer, a terra exige de nós, pessoas de todas as raças, nações, credos, exige de todos, em lugar do caos que extrema posições, a elegância que permite conciliar o inconciliável, que torna o impossível provável, e o provável, eminente. O amor esquisito é a metáfora que encontrámos para essa vibração oscilatória que permite a alteridade dos contrastes. Não há mais dicotomias esquerda/direita, não há mais progresso em direcção a um futuro risonho. Terá de existir contenção e sobriedade; terá de existir não apenas consumo, mas reciclagem; não apenas uma economia da preservação que se opõe a outra da extracção. Tem de haver menos egoísmo e menos moralismo. Deverá existir essa tensão oscilatória que permita equilíbrio, bom senso, uma visão paciente baseada na disponibilidade para lidar com os contrários, sabendo tirar o melhor partido disso; todos terão as suas razões, em todos residirá parte da solução, a partir do momento que existir a disponibilidade para aceitar isso e perceber o estado “a que isto chegou”. Terá de se inventar um amor esquisito, que não sendo uma revolução, nem uma normalização reacionária, nem um apelo a um ideal, seja um convite à disponibilidade para nos entendermos e procurarmos soluções.
Se há uma némesis dessa boa fé urgente, ela tem um nome: Donald Trump.
Donald Trump é um ser humano, certamente, merecedor de toda a compaixão que um semelhante merece. Mas o Trump que nos enfurece é outra coisa, é, sobretudo, uma personagem de um reality-show que se tornou presidente dos Estados Unidos da América. É uma figura caricatural, autocrática, porventura doente, que detém um poder incomensurável; é como colocar uma criança de 7 anos a brincar com os botões de uma consola de lançamento de bombas nucleares e ter de assistir a isso, impotente, todos os dias, em enxurradas de (des)informação.
Já se disse tudo, e o seu contrário, sobre Donald Trump, por isso ele é a representação mais evidente desse extremar de posições, desse caos que é o alimento predilecto da personagem. Trump, como máscara sem empatia, como paranóia egocêntrica, como “actor competente de um reality show”, como alguém lhe chamou é uma doença cívica. O covid-19 também é competentíssimo a dar cabo de vidas humanas, é o seu papel! Mas esse não é o papel, não pode ser o magistério do presidente dos Estados Unidos da América, pelo poder e pela importância que tem na salvaguarda da moderação e do bom-senso. Donald Trump, esta personagem com que nos confrontamos diariamente, não tem sequer competência para ser responsável por um condomínio!
Não acreditamos na “santidade” e na “superioridade moral” do Ocidente. Tudo isso são disparates anacrónicos. Mas há um intervalo de concórdia, extensível a todas as comunidades, pelo qual vale a pena pugnar. Se a globalização serviu para alguma coisa foi para pôr a nu, isso mesmo: um mundo diverso, imenso, impossível de abranger por quem quer que seja, que nenhuma “alma iluminada”, tem capacidade intelectual, elasticidade crítica, densidade metafísica, para abranger e compreender. A globalização tornou, paradoxalmente, o mundo mais próximo e mais inacessível. Esse facto não nos permite a arrogância de acharmos que somos melhores ou piores, de quem quer que seja. Somos diferentes, não somos iguais, somos desiguais, odiamos a manada, somos individualistas e precisamos desesperadamente uns dos outros. Concordamos, discordamos, compreendemos e não compreendemos. Temos de nos entender?
Insisto: este espectáculo não é um libelo político de uma qualquer facção. Este espectáculo não é de esquerda, de direita, ou de centro. Este espectáculo, como qualquer objecto artístico, não apresenta soluções. Exprime um desejo, expressa uma urgência, procura alertar para uma realidade que a cada dia que passa nos parece enlouquecer a todos, um pouco mais. É um espectáculo deliberadamente datado. Corresponde a uma necessidade de, aqui e agora, dar o nosso contributo, de dar o nosso testemunho enquanto artistas e cidadãos.
Fazer de Donald Trump o motivo de um manifesto teatral, de uma espécie de catarse Anti-Trump, com a componente irónica que lhe está subjacente, é uma obrigação democrática, porque a democracia é a nossa opção. Digamos, em bom twitês (espero não exceder o número de caracteres…): “O espectáculo Donald Trump e os Bombons é uma tareia teatral que o patife merece!”.
A Garagem regressa ao Teatro Taborda para dizer: NÃO. Não, definitivamente. Não podemos aceitar que o pior de Donald Trump ainda esteja para vir.
Venham ao teatro, regressem ao teatro, à Garagem, ou a outro lado onde os nossos colegas de profissão apresentem teatro. Venham ao teatro por uma boa causa. Façam esse esforço. A arte teatral, mais do que nunca é imprescindível neste mundo, literalmente, tutelado pela ditadura dos reality-shows, pela imbecilização das redes sociais, pelo medo do outro. Não tenham medo, estejam aqui e agora, em carne e osso, com máscara e mãos desinfectadas, a comungar do espanto, do mistério e da beleza da arte teatral e dos seus actores.
Carlos J. Pessoa
FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA
Texto e Encenação Carlos J. Pessoa
Assistência de Encenação Ana Palma
Interpretação Ana Palma e Rita Monteiro
Música e Sonoplastia Daniel Cervantes
Cenografia e Figurinos Sérgio Loureiro
Desenho de Luz Nuno Samora
Operação de Luz Gonçalo Morais
Direção de Produção Raquel Matos
Produção e Comunicação Joana Rodrigues
Conceção Gráfica para Comunicação Sérgio Loureiro
Financiamento Direção-Geral das Artes, Governo de Portugal | Ministério da Cultura
Apoios Câmara Municipal de Lisboa, EGEAC, Junta de Freguesia de Santa Maria Maior
M/14 | duração aproximada 70 min
Bilhete Único de 8,00€. Compre aqui.
Mais informações:
218 854 190 | 924 213 570
producao@teatrodagaragem.com
Teatro Taborda Costa do Castelo 75, 1100-178 Lisboa
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